Movi Show Brasil 2020 virtual, a qualidade e ousadia dos vinhos das pequenas vinícolas chilenas
Sem poder viajar, por causa da pandemia, os produtores do Movi – o Movimento dos Vinhateiros Independentes –, do Chile, estão fazendo esta semana virtualmente seu Show Brasil 2020. As 33 pequenas vinícolas associadas foram divididas nos três grupos em que se definem, com um tema em comum. Os convidados de cada flight receberam as 11 garrafinhas em casa e puderam degustar em conjunto.
Brasil Vinhos participou da prova de segunda-feira, primeiro dia do evento, “Clássicos Reinterpretados”, comandada por Angela Mochi, brasileira que integra o Movi, e pelo sommelier Diego Arrebola, à frente de um grupo de especialistas. A conclusão do painel foi unânime: os vinhos mantêm a qualidade e representam uma maneira especial e moderna de expressar o que de melhor o Chile produz. Sua marca registrada são o equilíbrio e o frescor.
Os clássicos, elaborados com uma releitura dos enólogos do Movi, foram apresentados pelas vinícolas Peumayen, Bauzá, Rukumila, Nerkihue, Tringario, OWM, Acróbata, Vultur, Flaherty, Laura Hartwig e Narbona. Todos tintos e, como o tema indica, traziam na composição uvas tradicionais nos vinhedos chilenos, caso de Cabernet Sauvignon, Carmenère, Syrah, Cabernet Franc, Petit Verdot e Malbec.
Reunir pequenos produtores que querem mostrar que vinho pode ser envolvimento pessoal, alma e paixão, foi a proposta que motivou a criação do Movi, em 2009. Era um contraponto à grande indústria do país, que produz milhares de garrafas por ano, alimentada por equipes profissionais.
Claro que as empresas maiores também oferecem rótulos de altíssima qualidade, premium e topo de gama. E foram elas que levaram a vinicultura chilena ao patamar de excelência que ocupa hoje no mundo. Mas o que ficou no mercado é a imagem de tintos e brancos entregues em enormes quantidades, frutados, redondos e certinhos.
No Movi, que revolucionou o mundo do vinho local, a produção é quase artesanal e os donos precisam necessariamente se envolver com o processo. O movimento começou com 12 participantes e hoje, uma década depois, com mais de 30 associados, de diferentes regiões, é uma referência de qualidade no país andino.
Escala humana
O movimento nasceu com espírito fortemente associativo, pois as pequenas vinícolas, sozinhas, tinham dificuldades para divulgar seus rótulos no mercado. Os sócios acreditam que o trabalho coletivo trará benefícios individuais para todos. O lema do grupo é desapego ao individualismo – eles dizem que não competem entre si, e sim se complementam, e cada participante pode apresentar os vinhos dos outros como se fossem seus.
Mas cada vinho reflete o caráter e a identidade da terra onde nasce e os sonhos de seu produtor. Hoje há no Movi vinhos de todo tipo – orgânicos, biodinâmicos, de secano, de terroir, vinhos de autor, vinhos de garagem.
No mais, o Movi promove ações conjuntas entre os associados, para reduzir custos e favorecer as pequenas empresas pela maior escala. O Comitê de Insumos, por exemplo, gerencia compras coletivas para os associados interessados. Acordos comerciais procuram beneficiar os integrantes.
Busca-se a divulgação coletiva dos vinhos, como a organização de eventos comuns junto ao consumidor, a exemplo do Movi Show Brasil e do festivo Movi Night. Outra iniciativa é promover a vinicultura do Chile como um todo, mostrando que há no país mais protagonistas além das grandes empresas. O movimento também participa de comissões técnicas junto ao governo e apoia produtores de vinhos de qualidade que esperam obter um valor justo por suas garrafas, mesmo que não façam parte do Movi.
A ideia de associação poderia servir de inspiração para as pequenas vinícolas brasileiras. Atuando em conjunto elas terão mais força, poderão enfrentar melhor as dificuldades da nossa economia e aumentar seu poder de barganha junto a grandes compradores e mesmo junto ao governo, sempre feroz na tributação dos vinhos. Para isso, os produtores precisariam deixar de lado os interesses puramente pessoais e entender que o trabalho conjunto vai beneficiar a todos.
Em números, a produção total dos associados do Movi equivale a apenas 0,1% do que se faz no Chile por ano. As maiores vinícolas ligadas ao grupo entregam ao mercado não mais que 200 mil garrafas por ano. A maioria, bem menos que isso e, algumas, pouco mais de mil garrafas por safra.
Não existe um teto fixo. Angela Mochi, que com o marido Marcos Attilio criou no vale chileno de Casablanca a pequena e notável vinícola Attilio & Mochi, explica que o critério do Movi é agrupar produtores independentes, que tenham vinhos de qualidade e feitos em escala humana, isto é, em uma quantidade que os donos dão conta de administrar diretamente.
A lista atual de associados, além da Attilio & Mochi e dos 11 mencionados acima, inclui: Viña Polkura, Gilmore, Erasmo, Kingston, PS Garcia Facundo, 3 Monos, Alchemy, Amidita, BoWines, Callma Vinum, Garage Wines, InsTinto Wines, La Despensa, Lagar Codegua, Maurizio Garibaldi, Mujer Andina, Starry Night, Viña Trabun, Trapi del Bueno, Villard e La Recova – de Casablanca e também de um brasileiro, o gaúcho David Giacomini.
Ao longo do tempo a relação de empresas já foi maior. Algumas entraram, outras saíram, por circunstâncias diversas. Angela Mochi lembra que este ano, por exemplo, duas vinícolas conhecidas deixaram o Movi. Uma foi a Clos Andino, de Curicó, pois o dono, o enólogo francês José Luis Martin-Bouquillard, voltou para a Europa e não tem mais como se envolver diretamente na produção.
No outro caso, da Von Siebenthal, o proprietário, o advogado suíço Mauro von Siebenthal, tornou-se sócio de uma empresa maior e também não pode mais participar do dia a dia de sua antiga vinícola artesanal.
Os vinhos
Como dito antes, no Movi Show Brasil 2020 o primeiro dia foi dedicado aos “Clássicos Reinterpretados”. O segundo dia, com outras 11 vinícolas, teve como assunto “O novo Chile”; e no último, a conversa girou em torno do tema “O antigo agora está na moda”.
Na degustação virtual do primeiro dia, de que Brasil Vinhos participou, foram apresentados 11 tintos. São eles, pela ordem de serviço: Peumayen Carmenère Ensueño 2016; Bauzá Presumido Carmenère 2018; Rukumila Mezcla Tinta 2013; Nerkihue Quiebre Red Blend 2017; Tringario Alma Cabernet Franc 2016; Owm Hand Made 2016; Acróbata Número 4; Vultur Gryphus 2017; Flaherty 2018; Laura Kartwig Seleción de Familia 2017; e Narbona Cabernet Sauvignon 2017. A logística da entrega das garrafinhas ficou por conta da Pandora, de Fernanda Fonseca.
Todos os 11 são bons e vários deles, caros, pela produção reduzida e cuidados. A maioria ainda não tem importador no Brasil, o que é uma pena. Selecionamos seis destes rótulos, alguns até por terem presença em nosso mercado e, portanto, podem ser mais facilmente conhecidos pelo consumidor interessado em saber como anda o Movi.
Narbona Cabernet Sauvignon 2018
Viña Narbona – Maipo – Chile – Nota 94
A pequena vinícola foi criada em 2009 pelo enólogo Pedro Narbona, que a administra com ajuda da família. Está localizada no vilarejo de Quebrada del Aji, perto de Quillota, a 35 km da litorânea Viña del Mar e a 130 km de Santiago. A Narbona (não confundir com a vinícola uruguaia de mesmo nome, do empresário argentino Eduardo “Pacha” Cantón, em Carmelo) fica no meio de uma mata nativa e é autossustentável – tem água de nascentes próprias e gera sua própria eletricidade. A vinificação é a mais natural possível. Seu Cabernet Sauvignon tem um equilíbrio estupendo. As uvas vieram do vale do Maipo e, depois de fermentadas em tanques de aço inoxidável, permaneceram por 18 meses em barricas francesas novas. Traz ao nariz cassis, cereja, notas de licor de cacau, mentoladas e de especiarias. Na boca é macio, elegante, com taninos finos, ótima acidez e grande frescor. Um vinho delicioso, do qual foram produzidas somente 950 garrafas. No mercado chileno é comercializado a preços que não assustam – 11.900 pesos, o que daria menos de R$ 90, se comprado lá (14,9%).
Acróbata Número 4
Acróbata – Vale de Colchagua – Chile – Terruares – R$ 196 – Nota 94
A vinícola foi fundada pelo engenheiro agrônomo e bodegueiro Jaime Roselló Larrain, que contou com a parceria do conhecido enólogo francês Patrick Valette. Jaime produz tintos com mescla de uvas, vindas de diferentes pontos de Colchagua – no caso, Apalta, mais quente, Lolol e Marchigue, de clima ameno. A série de tintos começou em 2011 e se repetiu em 2012. A partir daí, o rótulo seguinte passou a ser apenas o Número 3, com um blend de uvas e de safras. Agora vem o Número 4, com vinhos das colheitas de 2015 e 2016. É corte de 60% Cabernet Sauvignon, 30% Carmenère e 10% Syrah, de vinhas com idades entre 20 e 130 anos. Ficou pelo menos 12 meses em barricas de carvalho francês (30% novas). Nos aromas, lembra ameixa, tabaco e especiarias. Maduro, macio, mostra estrutura, com equilíbrio e frescor (13%).
Vultur Gryphus 2017
Vultur – Rancagua/Cachapoal – Chile – Nota 93
Depois que seu espírito irrequieto o levou a fazer vindimas na França, Nova Zelândia e Espanha, o enólogo Daniel Miranda se estabeleceu com a mulher, Alejandra Toro, em Donihue, um vilarejo de Rancagua, no vale de Cachapoal. Ali, em 2010, os dois começaram a produzir os próprios vinhos e se consideram uma adega familiar, que trabalha em escala humana, fiel à sua terra de origem. O interessante tinto Gryphus vem de 50% Carmenère, 30% Petit Verdot e 20% Petite Syrah, com repouso de 23 meses em barricas usadas de carvalho francês. Encorpado, maduro, tem boa base de fruta. Lembra ao nariz cereja, cassis, tabaco e especiarias, sem os traços verdes que muitas vezes acompanham a Carmenère. Na boca é encorpado, com equilíbrio, taninos redondos e bom frescor final. Um vinho saboroso. O rótulo faz referência ao condor-dos-Andes, o grande pássaro das montanhas cujo nome científico é exatamente Vultur gryphus (14,5%).
Quiebre Red Blend 2017
Nerkihue – Lolol/Vale de Colchagua – Chile – Nota 92
O empresário da construção Domingo Arteaga, cuja família há muito produzia vinhos no Sul do Chile, comprou em 2002 cerca de 20 hectares nas encostas de Lolol, em Colchagua, e plantou seu vinhedo. Pensava um dia produzir os próprios vinhos. Na época, os filhos eram pequenos. Ele chegou a elaborar tintos para consumo da família, e vendia a maior parte das uvas. Mais tarde, os filhos, especialmente Bernardo e Loreto, a Loly, retomaram o projeto do pai, com a marca Quiebre (“quebra”, referindo-se ao rompimento feito pela nova geração). Em 2015, começaram a comercializar seis varietais, vinificados pela enóloga Ximena Pacheco. Produzem 14 mil garrafas por ano. Um de seus rótulos é este blend de 33% Cabernet Sauvignon, 33% Malbec, 17% Syrah e 17% Petit Verdot. Conjunto harmonioso, apresenta nos aromas notas de eucalipto, balsâmicas, algo de alecrim, de baunilha e café, com um fundo de fruta, a cereja. Encorpado, preserva o frutado na boca, tem boa estrutura de taninos, com fineza e frescor (14,4%).
Owm Hand Made 2016
Owm Wines – Vale de Colchagua – Importadora Novo Chile/Dagirafa – R$ 264 – Nota 92
O enólogo José Antonio Bravo von Bischoffshausen e o viticultor Jaime Núñez Sunkel são primos de segundo grau. As mães deles estudaram juntas no sul do Chile, depois foram para Santiago e formaram família. Anos mais tarde, os primos se reencontraram no vale de Colchágua, onde ambos trabalhavam, em empresas diferentes. Resolveram tocar um projeto conjunto, de início modesto. Vinificaram 2 barris de Carmenère em 2011; em 2013 foram 5 barris, em uma adega alugada; e por fim, em 2014, já em uma pequena adega própria, produziram 17 barris. Seu Hand Made foi bem cuidado desde o nascimento, em um vinhedo localizado 15 km a sudoeste da cidade de Santa Cruz, na área conhecida como o vale de Panamá, que tem um microclima especial. É lote de seis uvas – 37% Carmenère, 23% Cabernet Sauvignon, 14% Syrah, 12% Petite Syrah, 9% Tempranillo e 5% Petit Verdot. Estagiou por 23 meses em barricas usadas de carvalho francês. Apresenta notas florais e de mentol, cassis e licor de cereja. No conjunto, muita fruta, taninos doces, boa acidez e elegância. Tudo está equilibrado e flui bem (13,8%).
Peumayen Carmenère Ensueño 2016
Viña Peumayen – Vale do Aconcagua – Chile – Nota 92
Uma boa expressão da Carmenère, a casta francesa desaparecida na Europa e reencontrada no Chile nos anos 1990. Reflete a paixão da família Carevic, descendente de croatas, que em 1998 plantou seu vinhedo na comuna de Panquehue, no vale de Aconcagua e fundou a própria vinícola, artesanal e independente. A propósito, Peumayen, na língua dos índios mapuche, quer dizer lugar de sonho. Pais e filhos se envolvem no projeto. A família Carevic valoriza o trabalho manual, protege o meio ambiente e realiza diretamente todas as tarefas de cultivo das uvas, produção e comercialização dos vinhos. O Ensueño é um Carmenère jovial, sem traços verdes, com boa fruta. Nos aromas há cassis, mentol e notas florais. Na boca é redondo e macio, com estrutura tânica fina, sem excessos. De início sente-se um pouco o álcool, o que logo desaparece no copo. Ficam o frescor e a vivacidade (14%).
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