JM da Fonseca preserva a tradição das ânforas de barro no Alentejo
José de Sousa é uma referência em vinhos no Alentejo, no sudeste de Portugal. Seus tintos são estruturados, volumosos, mas bastante finos e elegantes. E mostram, ao contrário do que muita gente pensa, que os vinhos alentejanos têm potencial de guarda e podem melhorar com a idade. O diferencial da casa, que produzia o lendário Tinto Velho, sempre foi o uso de antigas talhas de barro para fermentar o mosto. A vinícola pertence hoje à José Maria da Fonseca (JMF), produtor tradicional da Península de Setúbal, que soube manter a tradição ancestral e ainda usa ânforas para elaborar seus rótulos principais, o José de Sousa Mayor e o estupendo J.
As talhas de barro, usadas na antiguidade para fermentar e amadurecer vinhos, foram redescobertas há algum tempo por produtores personalíssimos, como o italiano Josko Gravner, do Friuli. Ele mandou vir ânforas típicas da Geórgia, no Cáucaso, região considerada berço da vinicultura há mais de 5 mil anos, e com elas produz seus fenomenais vinhos âmbar. No Chile, o talentoso enólogo Marcelo Retamal, da casa De Martino, surpreendeu a todos ao apresentar a linha Viejas Tinajas, vinhos feitos em velhas ânforas de argila no vale de Itata, no sul do país. Retamal também utiliza talhas para alguns vinhos de Viñedos de Alcohuaz, seu projeto pessoal no desértico vale de Elqui, no norte chileno.
No passado, as talhas também eram comuns no Alentejo. Elas não são fáceis de administrar. Por serem de barro, podem se quebrar, colocando a perder todo o mosto ou vinho ali contidos. Controlar a temperatura durante a fermentação também é uma tarefa que exige atenção. Normalmente o resfriamento é feito jogando água nas paredes externas ou por meio de serpentinas extras. Assim, com o tempo acabaram em desuso por parte de quase todas as vinícolas. Algumas as mantêm apenas como decoração.
Pois bem, o que foi um método ancestral e agora voltou à moda já fazia parte do dia a dia da vinícola portuguesa José de Sousa desde o século XIX. Domingos Soares Franco, enólogo experiente e vice-presidente da José Maria da Fonseca, que visitou o Brasil mais uma vez esta semana para promover seus rótulos junto com a importadora Decanter, conta que quando sua família comprou a Casa Agrícola José de Sousa Rosado Fernandes, em 1986, encontrou lá 20 ânforas de barro e sinais de que o espaço já conteve mais de 100. Por isso era chamada de Adega dos Potes.
A empresa José Maria da Fonseca, situada na Península de Setúbal, ao sul de Lisboa, destaca-se entre os maiores grupos vinícolas de Portugal. Seus vinhos feitos em Vila Nogueira de Azeitão são bastante conhecidos no Brasil, como o campeão Periquita (distribuído aqui pela Interfood) e os magníficos brancos fortificados Moscatel de Setúbal (Decanter).
Desde 1878
A compra da José de Sousa representou a entrada da família Soares Franco no concorrido mercado do Alentejo. Desde o início o objetivo foi manter o estilo que havia consagrado a secular vinícola, localizada no centro de Reguengos de Monsaraz. A JMF, lembra Domingos, adquiriu a propriedade de um médico, cunhado do antigo dono, que não tinha nenhum interesse por vinhos.
Não se conhece quando exatamente a casa foi fundada, pois não restaram documentos do passado. Sabe-se apenas que José de Sousa, agricultor alentejano, ganhou fama dentro e fora da província com seu mítico Tinto Velho. Mas Domingos diz que certa vez, ao ser retirada a moldura de uma foto antiga para restaurar, foram encontrados atrás três rótulos de vinho, bem conservados, com a data da safra de 1878. “Portanto, deduzimos que pelo menos nessa época a adega já existia”, ressalta ele.
Na José de Sousa atual passado e presente convivem em harmonia. A adega, no mesmo prédio pintado de branco e azul como antes, combina história com tecnologia de ponta. Aos poucos a JMF conseguiu comprar mais ânforas fora de uso em outras vinícolas e tem hoje 114 talhas de barro para fermentação. Elas ficam na parte antiga da adega, curiosamente instalada 3 metros abaixo do nível do solo, para manter uma temperatura naturalmente fresca durante todo o ano. Ali também há dois lagares para pisa a pé. Já a ala nova do projeto conta com 44 tanques de inox e toda a tecnologia moderna para a vinificação de tintos.
As uvas ainda vêm da mesma Herdade do Monte da Ribeira, com área de 120 hectares, dos quais 72 são de vinha. A região tem clima quente. Em solos de origem granítica e com boa exposição estão plantadas as castas tintas Trincadeira, Aragonez e Grand Noir. A JMF terminou a reconversão dos vinhedos nos anos 1990, incluindo a completa separação por castas. Em 20 hectares especiais foi feita seleção clonal, então novidade no Alentejo, para melhorar as plantas de Trincadeira e Aragonez.
É de se notar ainda a presença da Grand Noir de la Calmette, antiga casta francesa hoje rara, praticamente encontrada apenas em alguns poucos vinhedos na faixa fronteiriça entre o norte da Itália e o sul da Suíça, na Austrália e nas regiões portuguesas de Reguengos, Portalegre e Vidigueira – nestas duas últimas é chamada de Tinta Francesa.
A Grand Noir surgiu na França no século XIX, de um cruzamento de Petit Bouschet e da menos expressiva Aramon, feito pelo especialista Henri Bouschet, o mesmo que criou a grandiosa Alicante Bouschet. Segundo Jancis Robinson, em seu Guia de Castas (Edições Cotovia, Lisboa, 2000), a Grand Noir foi muito cultivada na França até por volta de 1920, sendo depois deixada de lado por ser bastante sensível ao oídio e ao frio do inverno.
Pistas por acaso
Domingos e seu irmão António Soares Franco, presidente da JMF, queriam recriar o mais fielmente possível o estilo do renomado Tinto Velho. Mas ao tomar posse da propriedade alentejana, em 1986, não encontraram nenhuma garrafa deste vinho, nem um único registro que pudesse dar uma pista de seu perfil. Por sorte, pouco depois, em uma viagem a Londres, António descobriu 12 garrafas do Tinto Velho 1940 em uma empresa especializada em leilões de vinhos. Com isso, e mais as uvas da vinha velha já existente, conseguiram o desejado ponto de partida do projeto.
Tudo se completou por um golpe do acaso. Certo dia, os funcionários que estavam fazendo a limpeza e recuperação da adega removeram uma pilha de carvão de lenha deixada ali havia muito tempo. Por baixo encontraram, surpresos, mil garrafas do mesmo Tinto Velho de 1940. Protegidos neste ambiente especial, os vinhos mantiveram intactas todas as suas características e estavam perfeitos.
Com tantas referências, Domingos pôde ter segurança para redefinir o perfil da nova linha da casa. O tinto de entrada passou a se chamar José de Sousa. No degrau acima houve mudanças. O Tinto Velho foi identificado inicialmente como José de Sousa Garrafeira. Domingos conta, com seu bom humor característico, que a burocracia da comissão vitivinícola alentejana não permitiu o nome, pois Garrafeira é uma categoria específica de vinhos: “Eu falei que iria trocar para José de Sousa Maior e eles disseram que também não podia, a legislação veta adjetivos que possam servir de qualificativo para um vinho. Pode sim, respondi, pois vou colocar Mayor com ípsilon, e aí não é adjetivo”. Assim foi feito e a partir da colheita de 1993 ficou José de Sousa Mayor.
Outra curiosidade cerca o J Tinto, atual topo de gama da vinícola. Muitos pensam que a letra jota do título faz menção a José de Sousa. Na verdade, segundo Domingos, o nome foi inspirado por uma namorada que ele teve, chamada Judite, discretamente louvada no contrarrótulo da garrafa: “Depois de um tempo terminamos o relacionamento, mas eu não quis mudar o nome, já que o vinho fazia muito sucesso”. O jeito foi alterar o contrarrótulo e o J passou a remeter mesmo para o antigo dono da casa.
Ripanço 2014
José Maria da Fonseca – Alentejo – Portugal – Decanter – R$ 100 – Nota 89
Tinto macio, produzido com 40% Aragonez, 35% Trincadeira, 14% Syrah e 11% Alicante Bouschet. Vinificado nos tanques de inox, repousa por 6 meses em barricas novas de carvalho francês e americano. O nome faz referência a uma técnica ancestral utilizada em sua elaboração, ainda do tempo dos romanos. Os cachos são esfregados em uma mesa feita de ripas de madeira, chamada mesa de ripanço. Com o movimento, os bagos caem embaixo e os engaços, aqueles cabinhos que prendem as uvas, ficam soltos na superfície, de onde são facilmente retirados. O desengace manual evita a extração dos taninos duros presentes nos cabinhos e deixa o vinho mais aveludado. No tinto, os aromas lembram fruta madura, a figo, com notas florais e de tabaco. Na boca é equilibrado, com taninos doces, em corpo médio. Um vinho diferente, com boa acidez e frescor (13,2%).
José de Sousa 2015
José Maria da Fonseca – Alentejo – Portugal – Decanter – R$ 113 – Nota 89
No lote entram 52% Grand Noir, 33% Trincadeira e 15% Aragonez, de vinhas novas. Uma pequena parte foi fermentada em talhas de barro e o restante, nos tanques de inox, com estágio de 9 meses em carvalho francês e americano. Traz ao nariz notas florais, de cacau e ervas, em base de fruta madura, lembrando ameixa. Tem corpo médio, equilíbrio, taninos sedosos e se mostra muito limpo na boca. Perfil mais austero, sem perder o frescor (14,2%).
José de Souza Mayor 2014
José Maria da Fonseca – Alentejo – Portugal – Decanter – R$ 213 – Nota 92
Tem composição semelhante à do irmão menor, 60% Grand Noir, 30% Trincadeira e 10% Aragonez, mas de vinhas velhas. Parte dos cachos é pisada em um lagar pequeno, como se fazia antigamente, depois massas e mosto são transferidos para talhas de barro e lagares maiores. Amadurece por 8 meses em barricas de carvalho francês novas e usadas e é engarrafado sem filtração. Resulta em um tinto delicioso, que lembra nos aromas figo, especiarias, tabaco e cacau. Mostra mais estrutura, é macio, com taninos firmes, maduros, bastante equilíbrio e elegância final. Nada pesado, tem bom potencial para guarda (14,5%).
José de Sousa J 2014
José Maria da Fonseca – Alentejo – Portugal – Decanter – R$ 343,20 – Nota 93
O topo de gama da casa tem composição um pouco diferente dos demais, pois mescla 60% Grand Noir, 28% Touriga Franca e 12% Touriga Nacional. As uvas são pisadas em lagar e a fermentação ocorre nas ânforas de barro, com leveduras indígenas, sem qualquer adição de produtos corretivos. Depois de maceração longa, de cerca de 12 dias, o vinho amadurece por 14 meses em barricas novas de carvalho francês. Complexo nos aromas, lembra cacau, tabaco, pimenta e outras especiarias, com notas minerais, em fundo frutado a amora e cassis. Tem bom corpo e estrutura, taninos firmes, finos, tudo integrado, com bastante elegância, a madeira bem colocada. Um tinto soberbo, à altura da tradição do Tinto Velho (14,4%).
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