Projeto das famílias Roquette e Cazes no Douro completa 15 anos de sucesso
Coração português, alma francesa. Ou vice-versa, tanto faz. O fato é que o projeto conjunto para produzir vinhos no Douro, no nordeste de Portugal, nascido da associação entre a família portuguesa Roquette e a família francesa Cazes, está completando 15 anos de muito sucesso. Para comemorar a data, Tomás Roquette e Jean-Charles Cazes, da segunda geração das respectivas famílias, estiveram em São Paulo no início de dezembro, onde comandaram uma degustação vertical do soberbo tinto Roquette & Cazes, em evento organizado pela importadora Qualimpor.
A parceria surgiu em 2002 e o primeiro vinho do empreendimento, produzido com castas portuguesas e vinificado com técnica francesa, o grandioso tinto Xisto, ganhou vida na colheita de 2003, daí os 15 anos lembrados agora. O Roquette & Cazes, elaborado pela primeira vez em 2006, é o segundo vinho do grupo, completando o portfólio.
Uma frase, sempre repetida pelos participantes, resume o projeto: “Três castas, duas famílias, um terroir”. As famílias são as duas envolvidas, claro. O terroir é o Douro; e as três castas são as que entram na composição dos dois vinhos, selecionadas entre as mais importantes daquela região portuguesa – Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz.
No evento de São Paulo ficou claro que o Roquete & Cazes é um grande vinho: estruturado, concentrado, mas com taninos maduros e muito elegante. E o Xisto é melhor ainda! Antes, vamos falar um pouco sobre as duas famílias e de como surgiu a parceria.
As famílias
Jorge Roquette, a mulher, Leonor, e os filhos Miguel, Tomás e Rita são donos da Quinta do Crasto, uma das mais belas do vale do rio Douro – provavelmente a região vinícola mais bonita do mundo. A propriedade que dá o nome à empresa está há mais de 100 anos nas mãos da família de Leonor.
No final da década de 1970, Jorge foi obrigado a se mudar com a mulher e os filhos para o Brasil, fugindo dos rumos tomados pela Revolução dos Cravos, de 1974, que derrubou a ditadura iniciada por António de Oliveira Salazar.
Depois de seis anos no Rio de Janeiro, retornou para Portugal em 1982, convidado a integrar a direção de um grande grupo financeiro. Enquanto isso, foi comprando aos poucos as partes da Quinta do Crasto em mãos dos parentes. Quando adquiriu toda a propriedade, entrou com os filhos no negócio do vinho.
Começaram por vender antigos lotes de Vinho do Porto herdados com os vinhedos e construções. Em 1994 estiveram entre os primeiros a produzir tintos de mesa no Douro. A quinta se situa no Cima Corgo, uma das três regiões em que o Douro se subdivide – as outras são o Baixo Corgo e o Douro Superior, na direção da fronteira com a Espanha.
A Quinta do Crasto apresenta tintos como o Reserva Vinhas Velhas e os estupendos Vinha da Ponte e Maria Teresa, também a partir de vinhas velhas – todos distribuídos no Brasil pela Qualimpor, importadora fundada por João Roquette, irmão caçula de Jorge.
Já Jean-Michel Cazes tem uma larga trajetória no mundo vinícola. Ele vem de uma família ligada ao negócio do vinho na região de Pauillac, em Bordeaux, desde o século XVIII, mas antes fez carreira em outras áreas. Engenheiro de Minas, com curso de especialização na Universidade do Texas, nos EUA, trabalhou na IBM e em 1986 assumiu um importante posto de direção no mega grupo financeiro francês Axa. Tudo isso, sem abandonar a tradição vinícola familiar.
Em 1973 ele passou a comandar o reputado Château Lynch-Bages, um cinquième Cru de Bordeaux, comprado por seu avô mais de três décadas atrás. Introduziu inovações tecnológicas na adega e conquistou mercados importantes para seus vinhos, como EUA, Japão e China. A família Cazes é dona de outras vinícolas de prestígio. Também em Bordeaux, Ormes de Pez e Villa Bel-Air (na zona de Graves); Domaine des Sénéchaux, em Châteauneuf-du-Pape; e Ostal Cazes, na Austrália.
Em 1993, o grupo Axa adquiriu em Portugal o controle da histórica Quinta do Noval, uma das vinícolas mais renomadas do Douro, pertencente à família Van Zeller. Em suas muitas idas à região, Jean-Michel Cazes conheceu e tornou-se amigo de Jorge Roquette, dono da Quinta do Crasto.
Depois de se aposentar como executivo, Jean-Michel pretendia expandir os negócios vinícolas da família. Tentou produzir vinhos na Argentina e na Austrália, mas os empreendimentos não prosperaram. Voltou-se então para o Douro, em Portugal. Em 2002 surgiu a ideia da sociedade entre as famílias Roquette e Cazes e o projeto logo foi colocado em prática. O desafio era respeitar as características do Douro e juntar duas equipes de enologia com tradições e culturas tão diferentes.
Naquele mesmo ano surgiu o primeiro vinho do grupo, o Xisto, produzido com Touriga Nacional, Tinta Roriz e Touriga Franca, com uvas provenientes de vinhedos arrendados no Cima Corgo, no Douro Superior e também das vinhas da Quinta do Crasto. Os franceses não gostaram do resultado e o vinho não foi colocado à venda.
Acertados os ponteiros, na safra de 2003 finalmente tudo deu certo e nasceu o Xisto, apresentado ao mercado quase três anos depois. Desde então, a vinificação é feita a quatro mãos, amigavelmente, entre os enólogos Daniel Llose, do Château Lynch-Bages, e Manuel Lobo, da Quinta do Crasto.
Nos últimos anos Jorge Roquette e Jean-Michel Cazes passaram gradualmente o comando das empresas aos filhos. No Crasto, as tarefas são divididas entre Tomás e seu irmão Miguel. No lado francês, em 2006 Jean-Charles Cazes assumiu posição de chefia no grupo Lynch-Bages e é ele quem representa a família junto aos Roquette na direção do projeto conjunto. Jean-Charles fala bem o português, pois sua mãe é de Moçambique, ex-colônia portuguesa na África. Além disso, ele morou dois anos aqui em São Paulo, no início da carreira, trabalhando para uma indústria francesa do setor de autopeças.
Douro Superior
Uma mudança logo aconteceu. Em 2000, Jorge e os filhos haviam comprado uma nova propriedade no Douro Superior, a Quinta da Cabreira. Na época, não havia nada ali. Como se sabe, o Douro Superior é a região de clima mais extremo do Douro, onde chove menos e faz mais calor. Mas tem muito potencial. Começaram praticamente do zero, com uma tecnologia de viticultura completamente diferente da encontrada na região, utilizando a ferramenta da rega gota a gota totalmente monitorada por computador. Os resultados foram surpreendentes, com a produção de uvas de excelente qualidade.
Jean-Michel Cazes achou aquilo muito interessante e resolveu também investir no Douro Superior. Comprou uma propriedade vizinha à Quinta da Cabreira, a Quinta do Meco, com 42 hectares. Depois que as vinhas plantadas nas duas propriedades se desenvolveram, passaram a fornecer a maior parte das uvas utilizadas na produção dos dois vinhos da empresa, o Xisto e o Roquette & Cazes. Quando este último foi lançado, em 2006, o Xisto ganhou um up grade, como tinto top da casa.
O Roquette & Cazes
Como se viu, desde o começo o tinto Roquete & Cazes foi elaborado com as três uvas escolhidas. Nas primeiras versões costumava trazer 60% Touriga Nacional, 25% Tinta Roriz e 15% Touriga Franca. Recentemente, os enólogos começaram a valorizar mais a Touriga Franca, que no vinho de 2015 entra com 25% do lote, contra 15% da Tinta Roriz.
“Nós estamos convencidos cada vez mais que a Touriga Franca é a casta que se dá melhor no Douro Superior”, afirma Tomás Roquette. Assim, é provável que ela acabe assumindo maior protagonismo daqui para frente, pois os vinhedos plantados na região no início dos anos 2000 começam a atingir o desenvolvimento pleno.
Se as uvas são portuguesas, na adega o manejo tem muito da experiência francesa. Durante o processo de fermentação, por exemplo, são feitas várias “delestages”, técnica francesa utilizada por muitas vinícolas para extrair componentes de maneira mais suave e eficiente, obtendo tintos menos adstringentes, mais frutados e elegantes.
O objetivo é aumentar a superfície de contato entre o líquido e a massa de cascas. O procedimento consiste em retirar todo o mosto do tanque e passá-lo para outro recipiente. Quando isto acontece, o chapéu, isto é, a massa de sólidos que estava por cima de tudo, desce para o fundo da cuba e se parte, liberando . Aí se devolve o líquido à cuba e ao passar e ser filtrado pela massa de sólidos, dá-se a extração de componentes com mais suavidade.
Na degustação conduzida por Tomás Roquette e Jean-Charles Cazes foram provados o Xisto 2013 e os Roquette & Cazes das safras de 2007, 2009, 2010, 2012, 2014 e 2015. No caso destes, vamos avaliar o exemplar mais antigo e o mais novo, que confirmam a qualidade, o estilo e o potencial de envelhecimento deste vinho magnífico. A importadora Qualimpor tem à venda os rótulos de 2014 e 2015.
Roquette & Cazes 2007
Roquete & Cazes – Douro – Portugal – Qualimpor – Nota 93
O ano de 2007 foi excelente no Douro, equilíbrio que se reflete no tinto. Produzido a partir de 60% Touriga Nacional, 25% Tinta Roriz e 15% Touriga Franca, amadureceu por 18 meses em barricas de carvalho francês (70% novas). Mostra no nariz e na boca que envelheceu muito bem com a passagem do tempo em garrafa. Complexo de aromas, lembra fruta vermelha madura, em meio a notas de alcatrão, tabaco e especiarias. É estruturado, encorpado e, ao mesmo tempo, bastante harmonioso, macio e elegante, com frescor final. Está delicioso para beber, mas ainda com vida pela frente (14,5%).
Roquette & Cazes 2015
Roquete & Cazes – Douro – Portugal – Qualimpor – R$ 280 – Nota 94
O ano de 2015 foi seco, mas muito equilibrado, pois choveu na quantidade ideal e nas datas mais adequadas para o desenvolvimento e plena maturação das uvas. Foi bom especialmente para a Touriga Nacional, que entra com 60% do lote. Para completar o restante, os enólogos Daniel Llose (Château Lynch-Bages) e Manuel Lobo (Quinta do Crasto) inverteram a composição adotada anteriormente. A Touriga Franca compareceu com 25% do total e a Tinta Roriz, com 15%. O estágio no carvalho francês foi de 18 meses. O resultado é um tinto estupendo, com aromas marcados por notas florais, a violeta, assentadas em base de frutos silvestres, framboesa e algo de especiarias. Tem ainda um toque exótico, de eucalipto. Na boca é jovial e fresco, mas já com características de um grande vinho. Estruturado, apresenta taninos finos, boa acidez, persistência e fineza. Um vinho de respeito (14,5%).
Xisto 2013
Roquete & Cazes – Douro – Portugal – Qualimpor – R$ 1.100 – Nota 95
Obra-prima da parceria das famílias Roquette e Cazes no Douro, o Xisto é um tinto que traz o equilíbrio e a natural elegância dos vinhos de classe. É elaborado predominantemente com Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz, às quais se agregam outras variedades tipicamente da região, pois o lote é temperado por uvas de vinhas velhas, daquelas em que as castas eram plantadas todas juntas. Estagia por 20 meses em barricas de carvalho francês. Complexo ao nariz, oferece fruta limpa, como cassis, envolta por notas florais, de tabaco e especiarias. É macio, sedoso, profundo, com taninos finos, boa acidez, equilíbrio e notável harmonia. Reúne o melhor do Douro português com a legítima tradição francesa (14,5%).
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